Tuesday, February 21, 2006

Pois, parece que nem com palavras isto la vai.

O bater de solas no carvalho negro dos degraus era crescente. Baques da madeira eram, contudo, menos tensos que se aproximavam de certa casa nos andares superiores. O barulho deteve-se na frente de uma porta de abeto claro. Este eco era ouvido pela única pessoa que o conseguia sentir, que abraçava um corpo imaginário mordendo os lábios numa fina dor, como um floco de neve descendo pela espinha abaixo.
Do lado de fora da porta, de mão nervosa e trémula, rasgando a fechadura com a chave, o outro fim daquele elo recuperava forças antes de entrar. O odor a limão açucarado dominava o ar como o acre de uma arma quando é disparada. Era doloroso. Queria esta perto dela, queria tocar-lhe, mas o mero olhar verde esmeralda daquele ser esvaziáva-o.
O bater da porta assinalava sempre algo, fosse bom ou mau. Ambos o sabiam e ambos gostavam de o saber. Naquele amor havia mais que um afecto louco e quente, havia uma silenciosa cumplicidade. Uma troca de olhares, envolvida numa das brisas da noite de Paris, podia prolongar-se por mais tempo que uma conversa.
Separava-os apenas uma parede. Os dois olhando para a porta, ouvindo o som do silêncio que quebrariam em breve, aproveitando-o. Aproveitando sim, aproveitando a certeza do que aconteceria a seguir, deleitando-se com os últimos e divinos segundos de uma espera que teria apenas um desfecho possível. Um afecto maduro e astuto, cheio de ardis amorosos.
A esquina da porta do quarto era a última etapa desta odisseia. Ao contorná-la, viu aquilo porque já esperava e ansiava. Ela, deitada, coberta de uma camisa de dormir azul escura, boca entreaberta e mão estática no ar, preparada para ser deitada de novo aos lábios. Fixava o vazio da varanda aberta, sabendo, todavia, que os olhos dele seguiam o mais ínfimo dos seus movimentos. O cabelo castanho mel, do qual pendia uma franja que lhe chegava aos olhos, espalhava-se pelos seus ombros como um manto de ouro. Descrição vã, mas inteiramente verdadeira. É impossível descrever tão divino ser sem cair em entusiasmos fúteis. Mas que olhos, que boca, que mãos, que braços! Algo que só um deus poderia criar. Ela sabia-o e usava este seu poder. Lia-lhe os pensamentos como as letras de um livro aberto à luz do sol.
- Então? – pergunta propositadamente banal.
- O costume – resposta banal. Sem sorrisos. Os dois olhando para direcções estranhas. Deitou-se ao lado dela, deixando que a sua essência lhe invadisse o corpo e o desiquilibrasse. Os seus lábios penetraram nas colinas daquele pescoço. Sempre que ali entrava perdia-se, e parecia-lhe que o labirinto também. Ela debatia-se com pequenos sussurros e encolher de ombros. Virou-lhe finalmente a cara, languidamente, com um enorme e brilhente sorriso.

Agradeço que continuem a comentar. São aceites insultos, ainda.

Sunday, February 19, 2006


Há amor amigo
Amor rebelde
Amor antigo
Amor da pele
Há amor tão longe
Amor distante
Amor de olhos
Amor de amante
Há amor de inverno
Amor de verão
Amor que rouba
Como um ladrão
Há amor passageiro
Amor não amado
Amor que aparece
Amor descartado
Há amor despido
Amor ausente
Amor de corpo
E sangue, bem quente
Há amor adulto
Amor pensado
Amor sem insulto
Mas nunca, nunca tocado
Há amor secreto
De cheiro intenso
Amor tão próximo
Amor de incenso
Há amor que mata
Amor que mente
Amor que nada, mas nada
Te faz contente, me faz contente
Há amor tão fraco
Amor não assumido
Amor de quarto
Que faz sentido
Há amor eterno
Sem nunca, talvez
Amor tão certo
Que acaba de vez
Há amor de certezas
Que não trará dor
Amor que afinal
É amor,
Sem amor
O amor é tudo,
Tudo isto
E nada disto
Para tanta gente
É acabar de maneira igual
E recomeçar
Um amor diferente
Sempre , para sempre
Para sempre

Donna Maria- Sempre Para Sempre

Sunday, February 05, 2006

O que a porcaria do amor faz a um gajo

Hélène rodopiou sobre si mesma e ficou a distância de um dedo da face dele. Sentiram as suas respirações a confundirem-se, um retirando o ar ao outro. Foram invadiados por uma dolorosa onda de loucura que lhes fazia arder o coração. Bourget sentia o perfume a estrangular-lhe a garganta e a sensação cálida do corpo de Hélène atacava-lhe o vulnerável coração. Os olhos de ambos rodopiavam num duelo embriagado e subitamente parecia não haver mais nada além deles. Colaram os lábios inesperadamente, num movimento que se assemelhava ao de o efeito de uma faísca num barril de pólvora. Beijaram-se com toda a energia que possuíam, afundados num doce extâse que desejavam nunca mais acabar. Ela colara-se ao seu corpo, aderindo totalmente. Percorriam a boca um do outro, em busca de refúgio, em busca do amor que nunca haviam possuído. As mãos deslizavamm por todas as partes do corpo. Actuavam como um só em todos os movimentos, explorando a sua intimidade e o limiar do espírito que ambos partilhavam e relutantemente recusavam.
Tudo se desenrolou num espaço de poucos segundos. Hélène separou a sua boca da de Bourget, olhando-o depois profundamente, examinando cada detalhe de nervosismo que ele deixava transparecer. Num gesto ponderado e delicado, como todos os que fazia, retirou o fio de ouro que pendia do seu pescoço e colocou-o na mão de Bourget.
- Para que te lembres de mim – disse. Pôs a mão na fivela da pasta que o pobre rapaz trazia na mão e arrancou-a secamente, fazendo com que o conteúdo da mala caísse no chão de mármore rosado. – isto é para que me recorde de ti – virou-se e seguiu o seu caminho, deixando Bourget com os pápeis e o coração aos pés, ouvindo o som do silêncio.

Ora faz favor de comentarem por favor. Aceitam-se insultos. Importante mesmo. Proximos episodios para breve.

Wednesday, February 01, 2006

Porque é que não se acende a luz?

E quanto mais penso, mais me certifico que me posso tornar desejante de ir por esse caminho, apesar de seguir o meu rumo pelo outro lado do mar. E é pelo outro lado do mar que os erros se tornam evidentes... Sendo que nao me asseguram nenhuma utopia, porquê segui-lo? porque nao correr por ambos? ou porquê termos tantas escolhas neste calor? Com tantos pareceres que me destinam e talvez nenhum seja o certo, ou mesmo porventura todos sejam, como eleger? Supondo que não há nenhuma conclusão óbvia, excluindo as hipóteses irrefutáveis que nos entristecem, escolhemos, partimos para esse caminho... O meu? É o mar: a harmonia, o desejo tenro de sossego, e a felicidade tão esperada por todos nós...Resta saber quando o mar se abre para nos dar passagem e nos esconde, ou quando não nos deixa ir em frente, e perante a sua imensidão nos expõe tal qual um semáforo bem aceso... E era isso que gostava de saber... E com tanto vigor e brio da nossa parte, há quem fique naufragado, como também há quem chegue ao seu porto, pronto para imergir noutro intenso mar...

Cântico negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruço os braços,
E nunca vou por ali...
A minha gloria é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre da minha Mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam os meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "Vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
(...) Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós.
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
(...) Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onda que se alevantou
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
-Sei que nao vou por aí!
René Magritte, O mês da vindima